segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Conto: O menino que se amava de mais.

Franzino, curvado e sempre as 7AM: ele quebra aquela direita, todos os dias. Um ritual que já vem com ele todos seus quatorze anos de uma vida misteriosa. Naquela direita, meio parecendo que foram postos estratégicamente por ele, encontram-se dois dos maiores bancos dessa movimentada megatropole, o “Time is Money” e o “Less is More”, ambos com fachadas robustas, pós-modernas, com seus altos e largos espelhos esverdeados, lembrando dinheiro, e com seus funcionários roboticamentes treinados, e felizes - há quem diga que são também milimetricamente treinados para parecer isso. Da calçada não se vê nada lá dentro, a não ser seu “Eu” refletindo naqueles esverdeados e límpidos vidros. Logo a direita do “Time is Money” tem um beco que nunca chamou atenção de ninguém naquela caótica megatrópole:
- Ainda mais logo ali, entre um dos maiores bancos da cidade, quem faria algo ali, naquele beco pra correr o risco de ser pego pelos fortes e imponentes seguranças do banco? Fora que a polícia sempre está por ali.
- É, ninguém correria esse risco.
É essa a conversa entre duas amigas, com suas saias nos joelhos e ternos passados com um perfeccionismo-virginiano. Engraçado, nessa cidade há sempre alguém respondendo as nossas perguntas enquanto as pensamos, até me benzo sempre que isso acontece, vai que eu ganhe na megaloteria?
- Bom dia Dona Dina
Dona Dina é a dona da padaria que fica ao lado do beco do banco. E quem fala é aquele franzino e curvado menino misterioso da 7AM. Penso: - Esse menino se fosse meu filho eu o levaria no médico, curvado, quase caindo pra frente, nessa idade? Isso não deve ser normal, depois quando ficar mais velho vai tá aí, reclamando! Quem dizia isso era a prima da minha avó, isso la na época de 2013, Dona Amélia - que veio morar conosco quando ficou viúva do coveiro, Sr. Miurra, um japoneizinho gente fina. Nossa, me lembro como hoje, aliás, como já “tou” ficando velho: quanto tempo já se passaram. 2080, quem diria? Eu, aquele moleque franzino e “mirradinho”, aqui chegando. Obrigado mãezinha ai do céu. E me benzo. Talvez seja por isso que estou aqui firme e forte.
Da padaria a sua casa, sempre nessa ordem, lá se vai o menino franzino, sem falar com ninguém, sem ninguém, só ele e ele. No caminho de ida e volta, bem em frente daquele banco que fez com que a minha família perdesse tudo, ele se olha naqueles espelhados vidros esverdeados, é como se o amor estivesse ali. É uma admiração parecida com a que eu tinha com a Gabriela Ferraz, uma menina linda que vi refletindo naquele vidro espelhado do antigo prédio onde funciona hoje o “Time is Money”, em vinte e cinco de agosto de 2020. Me lembro como hoje. Me benzo. Falar esse nome me da arrepios. Credo. (e então resmunga baixo):
- Quando que esse povo vai perceber o mal que eles nos fazem?
O garoto franzino nem se vê mais, hora dessa já deve estar em casa. Essas crianças já nascem todas correndo.
- Boa tarde
- Opa, boa tarde!
Esse é o Fernando, estudamos na quinta série juntos, casou com a Ana Lúcia, chata pra “carvalho”. Pra não dizer outra coisa. Não sei nem se terminou o colegial, ganâncioso do jeito que era deve ter trocado o estudo por trabalho. Tem a quem puxar: seu pai. Senhor Ernesto Hamlish (Rã-m-li-sh, lembro que sempre sofreu bullying por causa do seu sobrenome por ter “rã” no meio). Empresário de sucesso, endinheirou-se e nunca mais foi feliz. Se casou três vezes até que conheceu a mãe do Fernando, Senhora Brenda Hamlish, um amor de pessoa. Lembro dos chás e bolos que nos preparava, de um capricho singular.
- Boa tarde
- “Tarrrde”
Se esse porteiro soubesse como esse “- Tarrrde” me irrita ele com certeza aprendia a falar o “Boa”.
Nossa, bem que a prima da minha avó tinha razão: andar curvado quando jovem dá uma dor danada quando se velho. Que Deus a tenha. Puxa, aí, ô coluna, colabora. Ligo então minha Tvphone 3D, a comprei numa dessas promoções que o governo faz para vender o que está “encalhado” nas lojas. Paguei barato. Ainda estou começando a aprender mudar os canais. Peraí. Deixa-me ver. Acho que é esse. Aí, tô com uma dor aqui na coluna. Acho que consegui. O problema dessas coisas modernas é o tempo: o tempo que passamos aprendendo e o tempo que perdemos com elas. Na minha época quem tinha um tablet era Rei, o útimo celular lançado: príncipe - e ficava com quem quisesse. Acendo um cigarro para relaxar e vê se me desligo dessa dor.
23:00 PM. É essa a hora que consigo enxergar no meu relógio. Cochilei. Nossa, fazia tempo que não cochilava assim. Sono acumulado é um problema. Mas talvez cochilei por conta do analgésico.
(trim-trim-trim)
- A essa hora, quem que me incomoda meu? Alô.
- Alô
- Quanto tempo rapaz! (Bruno é um dos meus grandes amigos, na adolescência aprontamos tudo o que pudemos, São Paulo depois da nossa adolescência nunca mais foi a mesma)
- Verdade... Tá em casa?
- Não, você liga na minha casa e não estou em casa. Tá. Fala, o que você quer?
- Topa uma rodada de icebeer?
- Você parece não me conhecer, não? Onde? que horas?
- Bar do Ledz’s. Não sei, talvez as 23:30PM.
- Acabei de acordar. Chego as 23:45PM. Sem Atraso?
- Sem atraso.
- Combinado. Aí.
- Combinado. o que foi?
- Nada, só estou enferrujado. (rimos sem parar)
- Então tá combinado.
- Tá. Tchau.

6AM. (bip, bip, bip)
Não suporto o barulho desse despertador. Se ele soubesse pensaria antes de me acordar. Bom dia mundo. Me benzo. Bom dia mãezinha ai do céu. Então abro a janela e vejo na no finalzinho da Av. Sumaré ele, tão gracioso, tão puro e ingenuo. Vai surgindo aos poucos, e então, colorindo tudo, sem pedir nada em troca. O laranja se mistura com aquele vermelhinho que ora é rosa, ora é um vermelhinho que me lembra amoras amadurecendo, igual as que costumava colher naquela amoreira que tinha em frente ao antigo prédio que esse maldito banco enfincou suas garras! É incrível como tudo parece que vai ganhando vida, pouco aos poucos. Consigo ouvir os barulhos daquelas velhas botas pesadas descendo a avenida. Clash-clash-clash.
São 7AM em ponto e lá vem ele, o mesmo franzino, misterioso e quieto menino da Rua Atalaia. Parece desfilar com suas botas pesadas em meios aqueles homens engravatados e robóticos. Despretensioso. Não pede nada em troca, não oferece nada. É apenas um garoto, franzino, curvado e que quando ficar velho terá dores na coluna. Ela nunca saberá disso: mas sempre concordei com a Dona Amélia em segredo.
Num ritual de culto ao corpo tão puro ele quebra aquela direita, e naqueles vidros esverdeados-amaldiçoados ele se admira, é o amor ali; há o amor naquela admiração tão singular. Se embeleza sem pressa, assim como seu caminhado. Tudo fica em câmara lenta e quando vejo já não se da mais tempo. Droga. Amanhã eu irei fazer o que sempre quis fazer, antes que essa dor me mate, ou que caia um meteoro, ou a Terra exploda. Me benzo três vezes seguidas.
Ja se passam dos 55° C. 55. Cinquenta e cinco.Cin-quen-ta e cin-co graus. Os polos já se derreteram. Se o homem tivesse ouvido o que aqueles pesquisadores malucos daquela época falavam isso não teria acontecido, malditos. A cada dia esse calor aumenta mais, que Deus do céu me leve antes disso aqui explodir. Ligo a T.V. Vejo a Terra explodindo, ou melhor, a Av. Sumaré, lá bem na esquina com a Av. Paulo VI, vejo a cidade pegando fogo (se tem uma coisa que esses homem que fazem TV não aprenderam ainda é que essas legendas miudinhas são difíceis de se ler). Pego meus óculos: manifestantes tomam a Av. Sumaré. Rapidamente me lembro daquelas manifestações que vivi em 2013:
- Esse “povo” não tem é o que fazer, por isso ficam aí protestando atoa!!
Era isso que eu e milhões de jovens ouvíamos. Se bem que pra mim os que mais me irritavam eram os comentários dizendo da minha idade, muitos diziam que eu era “maria vai com as outras”, que não sabia o que estava fazendo ainda, pois era uma “criança”. Espero que esses mais velhos que me criticavam, como a prima do meu pai que devia ter uns 30 anos naquela época, esteja viva para ver o que está acontecendo aqui, agora, e quem eles estão usando como referência: nós.
E aos poucos não se fala em outra coisa a não ser nos jovens que lá vem descendo a Sumaré. Vagarosamente... já se pode ouvir os primeiros gritos dos “gigantes adormecidos”:
- Ô GIGANTE ACORDOOOU-ÔÔ…
- Seeemmm violência! Seeemmm violência! Seeemmm violência...!
Como fizemos naquele 2013. Pouco a pouco se ouve mais. Os pelos arrepiam, a mão soa, o coração vibra. Me debruço naquela janela e me ponho a admirar… Vou logo preparando meu chá, pra não perder nenhum detalhe do que eu estava prestes a reviver (sirene). E então eles chegaram e de: -  Ô GIGANTE ACORDOOOU-ÔÔ… Passo a ouvir barulhos de explosões. Ainda não conseguia avistá-los. Maldita vista que tenho desse apartamento - sempre me perguntei quem foi o grande gênio que decidiu colocar a única janela do apartamento bem numa curva? - mas podia ouvi-los como se estivesse vendo-os. Booomm! Booommm! Escuto então barulho de vidros sendo estilhaçados e é quando me esforço mais um pouco para conseguir vê-los. A dor na coluna não ajuda muito. Crafttt! Crack! Plaft! São eles, tão límpidos, com brilhos, que refletem todos os dias aquele menino franzino, que embeleza aqueles cabelos castanhos, e as saias das garotas que nele refletem; ali, o amor, puro, ingênuo, de uma pessoa por ela mesmo, esverdeados como o orvalho e  brilhosos como aquele “solzinho” sem vergonha que nasceu essa manhã. Se partindo como cascas de ovos, tão frágeis como. Ver todo aquele “poder” se esmoecendo como cascas de ovos foi de encher de orgulho esse peito aqui. E bato no peito, forte. Foi quando de repente subiu aquela fumaceira branca e desmaio.
Esse é um dos problemas de se morar baixo. Acordo e tudo já estava:
“ - Tá, tudo sobre controle”.
É o que o capitão diz na TV. Amo falar e quem fala: “ - Tá tudo sobre controle!”. Acho engraçado usar essa expressão tão autoritária sem ver problema nisso. Comemorando o que ainda não sequerá sabia o que tinha acontecido me pus a me dobrar à janela e me torcer todo para ver aquela esquina.
Em chamas, ali, nos meus olhos, a maldição da minha vida no chão. Aquele desgraçado banco esta no chão mãezinha. Eu falei. Eu falei que esse dia chegaria, não falei? Bato no peito. Pulo. Danço ouvindo a notícia, e esqueço da dor nas costas. E é num passinho digno do rei Michael Jackson que ela insiste em aparecer, como um cometa, como aqueles manifestantes que “botaram” no chão o maldito sem dó, ela, que a prima da minha avó já tinha me avisado. A dor maldita.Tomo tudo o que vejo para dor na minha frente, queria comemorar sem parar.
6AM. (bip, bip, bip)
Puta que pariu. E então percebo que acordei no sofá, ali mesmo onde tinha tomado aqueles malditos remédios. Apresado pra ver com meus próprios olhos tudo o que tinha acontecido até a espera pelo elevador em deixa mais ansioso, e puto da vida por ainda ter que esperar por esse negócio treco tão obsoleto.
Na rua não se vê ninguém, todos estão temendo o tal gigante, coitados, deveriam temer outros gigantes. Dona Dina não abriu hoje, e o franzino, será que vem? Mãe do céu. Avisto o banco no chão, em meio as cinzas, aqueles lindos espelhos que refletiam aquelas meninas de saias até o joelho com seus sorrisos robóticos, seus imponentes seguranças, e ele, o menino franzino, que parecia se amar naqueles espelhos, o menino que se amava de mais. Pego um pedaço de estilhaço de espelho, e então guardo no bolso, logo a cima do peito esquerdo. Cada passo em cima daqueles vidros doía, me cortava. E é bem naquela mesma esquina que durante quatorze anos que ele se admirou, eu o conheci, parecia que algo foi o arrancado, sem pedir, sem comunicado:
- Como pode, e todos os trabalhadores desse prédio, onde trabalharão? E ela? Onde ela vai trabalhar? Não, não, malditos!!!
- Parece que a coisa foi brava ontem - exclamo querendo puxar assunto.
- Malditos, como podem tirar assim algo de alguém?
- Calma, dinheiro nunca foi problema para esse banco, já, já tá de “pé” novamente - falo num tom de deboche, a fim de acalma-lo, e é então que num tom de desilusão escuto retrucando.
- E ela? Era hoje, hoje que ia entregar isso a ela - e mostra um papel amassado, guardado num bolsinho do lado esquerdo, em cima do peito.
- Ela quem rapaz?
- Aquela menina, da saia nos joelhos!
- Que menina?
- A que eu via refletindo todos os dias nesses espelhos - aponta para os estilhaços no chão, com um olhar desolado - aqueles longos cabelos, pele lisa, olhos grandes, de saias nos joelhos, que todo dia passava aqui as 7AM, com sua amiga, rindo fácil e que sempre usava o crachá, aquele crachá que um dia eu o encontrei, bem aqui - e aponta para o beco - e li nele aquele nome que não sai da minha cabeça. E ela, a única que parecia ser realmente feliz e que eu tanto admirava-ava-amava-ava? E agora?
- Ela voltará aqui, já, já, esse banco está de pé novamente - o acalmo. Mas meu caro rapaz, quem é ela? Por que tanto medo de não vê-la? Qual o nome da moça, e o sobrenome? ‘Se’ tem? Talvez a Dona Dina a conheça…
Levanta a cabeça, me olha bem em os meus olhos, calmo e como uma sensação de estar vendo-a em pensamento me responde:
- Gabriela Ferraz.

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